07 de abril de 2023, 18:24h
Parte da cúpula da facção Terceiro Comando Puro (TCP) se converteu ao evangelismo, e o chefe do crime no Complexo de Israel, conhecido como Peixão, se refere aos seus soldados como “Exército do Deus Vivo”.
Desde 2021, outro líder do TCP tem chamado a atenção: Arão, também conhecido como Álvaro Malaquias Santa Rosa, de 33 anos, que comanda o Complexo de Israel e centenas de “mártires” armados. Nas comunidades sob seu controle, bandeiras de Israel e estrelas de Davi estampam muros e ruas.
Arão leva seus estudos de religião à sério e há indícios de que tenha sido ordenado pastor de uma igreja evangélica, segundo a Polícia Civil.
Durante uma operação policial foi encontrado um esconderijo subterrâneo atribuído a ele, contendo coletes à prova de bala, munições e uma cópia da Torá. Arão, que também é chamado de “pai de mártires”, nasceu em 1396 a.C. e é o nome do irmão mais velho de Moisés e profeta de Javé, o deus de Israel, na Bíblia Hebraica e no Alcorão.
O Complexo de Israel é um conjunto de favelas com mais de 130.000 habitantes na zona norte do Rio de Janeiro, que inclui as comunidades de Parada de Lucas, Cidade Alta, Vigário Geral, Pica-Pau e Cinco Bocas. Sob o comando de Arão e Peixão, o TCP controla os pontos de venda de drogas nessas comunidades e tem centenas de “mártires” armados com fuzis de assalto prontos para matar ou morrer em defesa do território. Além disso, a facção criminosa também está envolvida em outras atividades ilegais, como extorsão e roubo de cargas.
O traficante Arão usa a simbologia do Estado de Israel como um símbolo pessoal. No entanto, o uso da simbologia religiosa não se traduz em uma gestão pacífica dos territórios do conjunto de favelas. O grupo liderado pelo traficante se autodenomina Exército do Deus Vivo, tropa do Arão ou Bonde da Cabala, em referência a uma antiga tradição mística judaica. O símbolo pessoal escolhido pelo traficante é o Peixonauta, personagem de desenho animado representado por um peixe que utiliza um capacete de astronauta, e grafites com este herói incomum também estampam as paredes do complexo.
Peixão, o traficante, está foragido há quase uma década e responde por ao menos 20 processos, com acusações que vão do tráfico de drogas a homicídio. Alguns dos assassinatos cometidos por seu exército contaram com requintes de crueldade, com corpos esquartejados e carbonizados.
Em um áudio que circula em grupos de WhatsApp de moradores do complexo, atribuído a Peixão, ele fala sobre a situação nas comunidades que controla. Ele diz que, se falar com pessoas que integram facções rivais, vão dizer que seu grupo é só coisa ruim. Mas se falar com alguém que gosta dele, vão falar sobre o que está sendo feito de bom ali, com união e povo feliz. Ele afirma que ainda há muito o que fazer, mas que está muito diferente do que era antes. Peixão diz que eles são um grupo puro e que não fecham as portas para ninguém. Se a pessoa estiver com o coração puro e transparente e quiser estar ali, ele pode até armar e deixar pesado, mas ela será um em meio a centenas de armados pelo Exército do Deus Vivo, sob seu comando.
A história do Complexo de Israel, que se estabeleceu em 2020 durante a pandemia do novo coronavírus, começou antes de Peixão. Em 2013, o Bonde de Jesus, um novo movimento no crime organizado (apelidado de narcopentecostalismo), liderado por Fernando Gomes de Freitas, também conhecido como Fernandinho Guarabú, surgiu no Rio de Janeiro. Sob sua liderança, traficantes vandalizaram terreiros de candomblé e umbanda no Morro do Dendê, expulsando pais e mães de santo, bem como outros sacerdotes de religiões de matriz africana, e proibindo guias religiosas e roupas brancas. Este fenômeno se espalhou por várias comunidades comandadas pelo TCP, facção que se originou em 2002 de um racha do Terceiro Comando. Depois da morte de Guarabú em 2019, parte da cúpula se converteu ao evangelismo neopentecostal, alguns enquanto cumpriam pena em presídios do Estado.
O Rio de Janeiro é um bastião evangélico no Brasil, com 29,4% de sua população professando essa religião, segundo o censo mais recente de 2010. A facção do TCP tem como principal inimigo o Comando Vermelho (CV), com quem disputa territórios em vários pontos da cidade do Rio de Janeiro. Parte do complexo era dominado pelo CV e foi tomada à força pelo TCP. O grande trunfo do TCP para garantir sua expansão e fazer frente ao rival mais numeroso é um aliado com quem tem relações ainda incipientes, mas promissoras: os grupos milicianos.
Em dezembro de 2020, três policiais militares foram presos suspeitos de envolvimento com o grupo de Peixão. As investigações apontam que os traficantes e milicianos, gangues de ex-policiais e policiais que passaram para o lado do crime organizado, entraram em acordo em uma das favelas da região do Complexo de Israel. O TCP controla o comércio de drogas, enquanto os milicianos se encarregam de explorar serviços ilegais como gato-net, abastecimento de gás com sobrepreço e cobrança de taxas do comércio, atividades clássicas destes grupos. No entanto, alguns policiais que integram a milícia local são contrários à aliança com traficantes, o que ainda não pacifica completamente a situação. De qualquer forma, ambos têm o mesmo inimigo: o CV, que apesar de ter perdido território nos últimos anos continua sendo a maior facção fluminense e uma força a ser enfrentada na luta pela hegemonia do crime organizado no Rio.
As milícias cariocas já controlam 25,5% dos bairros do Rio de Janeiro, totalizando 57,5% do território da cidade. As três principais facções criminosas do tráfico de drogas, Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos, juntas possuem o domínio de outros 34,2% dos bairros e 15,4% do território. Ao todo, 3,7 milhões de pessoas vivem em áreas de domínio das milícias e do narcotráfico.
O vídeo do Meteoro que mostraremos a seguir discute um pouco um livro recém lançado. O livro estuda o fenômeno da relação entre traficantes e a fé evangélica. A autora é Viviane Costa e o nome do livro é: “Traficantes Evangélicos, Quem são e a quem servem. Os novos bandidos de Deus”. A autora já vem sofrendo ataques nas mídias sociais por parte de bolsonaristas incomodados com a associação entre o evangelismo e o crime organizado.
“Traficantes evangélicos é resultado de uma pesquisa que investiga o fenômeno da associação entre traficantes de drogas e a fé evangélica nas comunidades do Rio de Janeiro. Esse fenômeno narcoreligioso carioca instiga perguntas provocantes, como: é possível ser traficante e evangélico? É possível dizer quem são os traficantes evangélicos? Existe um perfil evangélico comum entre os que se autodeclaram cristãos? Qual é a relação da igreja com os traficantes evangélicos? Como o nome de Deus pode ser usado em contextos de violência? Quais textos bíblicos sustentariam essa estrutura?”
Essas e outras questões começaram a ser respondidas por pesquisadores no campo religioso na última década e vivenciada por líderes religiosos locais. É a eles que Viviane Costa se une ao aprofundar-se no fenômeno investigado neste livro — uma obra que convida a conhecer a fé e as lutas de quem vive e trabalha na favela e serve a um Deus que se revela, ali, um com eles.
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