Por Engenheiro, doutor, Cássio Barbosa

30 de março de 2023, 15:33h

A publicação de artigos surgiu em priscas eras com a finalidade de divulgação de trabalhos científicos. De fato, é muito importante, e até mesmo prazeroso para um pesquisador, divulgar seu trabalho por uma série de motivos: para receber respostas de seus pares, que possam contribuir para o aperfeiçoamento do trabalho, para comunicar a outros pesquisadores, geralmente os que trabalham em temas semelhantes, em outros institutos/universidades, regiões e países, o que estão realizando nesse tema, com possibilidade de que isso estimule o surgimento de novas parcerias, e também comunicar à sociedade, ao público em geral, resultados do trabalho em andamento, que possam reverter em benefícios para a coletividade.

Em suma, são muitos os benefícios que podem advir da publicação de artigos científicos, principalmente me periódicos conceituados, que são consultados por grande número de pesquisadores. É até uma experiência muito agradável para um pesquisador, receber pedidos de envio de íntegras de artigos que possam não estar disponíveis para todos os pesquisadores, e principalmente ter seus artigos citados como referências em artigos de outros pesquisadores, um fato que inegavelmente atesta o valor atribuído e o reconhecimento à relevância daquele trabalho.

Apesar de todos esses aspectos muito positivos, quando este importante aspecto da produção científica é encaminhado de forma inadequada, sérios problemas podem ocorrer. Uma das principais fontes de problemas nesta área decorre da atitude, que se manifesta há décadas, das agências de fomento à pesquisa, que transformaram a publicação de artigos científicos em periódicos internacionais específicos como um dos principais critérios numa espécie de “certame”, verdadeiro “campeonato” para obtenção de verbas para pesquisa, conhecido no idioma inglês como “publish or perish”, que em tradução livre e literal equivaleria a “publique ou morra” [1-3].

Nesse sistema, para conceder bolsas, auxílios e até mesmo apoio financeiro para a realização de pesquisas por meio de editais, um dos principais critérios, há vários anos, tem sido a publicação de artigos do ponto de vista basicamente quantitativo: número de artigos publicados em determinados periódicos, que geralmente também são os mais bem colocados em um “ranking” de periódicos (“Qualis”) [4-7], estabelecidos com critérios nada transparentes, por comissões igualmente nada transparentes, cujos critérios de classificação tampouco são bem conhecidos pela comunidade científica, que desconhece se nesses critérios estão contemplados índices objetivos, como o fator de impacto (“impact factor” no idioma inglês) de cada periódico, geralmente baseado na quantidade de citações que recebe cada artigo publicado naquele periódico [8-11].

Como uma das piores consequências desse sistema extremamente competitivo e pouco transparente, utilizado como base de referência para a concessão de bolsas, auxílios e financiamento para pesquisas científicas, é possível citar a chamada fraude acadêmica, o uso de diversos subterfúgios e manobras antiéticas, chegando às raias da ilegalidade, com a finalidade de fazer com que um determinado pesquisador supere seus “competidores” na busca por esse apoio financeiro para a realização de suas pesquisas, ainda mais num ambiente precário como o da pesquisa científica no Brasil, com inúmeros, seguidos e repetidos cortes orçamentários para as atividades relacionadas com ciência e tecnologia no Brasil, principalmente no período de 2016 a 2022. Na busca desenfreada por esses escassos recursos, no estilo “publish or perish”, inevitavelmente alguns pesquisadores vão se lançar a expedientes antiéticos, ou mesmo ilegais, como o plágio, o autoplágio e a chamada publicação salame (“salami slicing” no idioma inglês), por exemplo [12-21].

Imagina-se que toda a comunidade científica concorde que o plágio é uma prática muito condenável, altamente antiética, reprovável, pois significa que no seu artigo um pesquisador (ou pesquisadores) copiou os conceitos, as ideias e até mesmo as palavras, de outro autor (ou autores), sem citar o artigo de onde retirou aqueles conceitos, ideais ou palavras, como se fosse um estudante de ensino fundamental ou médio, que “cola” numa prova ou teste, copiando os resultados das questões que foram escritos por outro colega, tentando iludir o professor de que foi ele mesmo quem respondeu aquelas questões daquela maneira [12-15]. O autoplágio é um conceito introduzido mais recentemente.

O autoplágio é um conceito introduzido mais recentemente nessa abordagem crítica às
práticas antiéticas na escrita de artigos científicos. Significa que o autor, ou autores,
praticamente repetiram o mesmo artigo numa “nova” publicação, modificando apenas poucos
detalhes, principalmente no título e muito pouco no texto, ou seja, praticamente publicou
duas ou mais vezes o mesmo artigo com muito poucas alterações. Num ambiente competitivo
de verbas para projetos, auxílios e bolsas, nos quais vale somente a máxima do “publish or
perish”, sabendo o autor, ou autores, que o quantitativo de publicações é muito importante
como critério preponderante para as avaliações nessas comissões, que decidem quem ganhará
o apoio financeiro, pesquisadores pouco afeitos à ética lançam mão desse recurso fraudulento,
gerando distorções que prejudicam o sistema de ciência e tecnologia como um todo [16-18].

Muito semelhante, e com os mesmos propósitos, outra prática antiética surgiu ao
longo dos ano a chamada publicação salame, em inglês: “salami slicing”. Isso consiste em
transformar o que seria um único artigo em vários artigos publicados ao mesmo tempo, ou
quase, somente modificando alguns poucos detalhes de um para o outro. Essa denominação
surgiu como referência a um salame que é fatiado em vários pedaços para ser consumido em
unidades menores. Praticamente seria uma variação do autoplágio, diferenciando-se deste
somente pelo número: em vez de um artigo ser praticamente repetido em outro, o que seria
um artigo somente é “fatiado” em vários artigos, com o único propósito de aumentar o
número de publicações, dentro do critério “publish or perish”, de que, quanto mais artigos
forem publicados por um determinado pesquisador ou grupo de pesquisa, maiores serão as
chances deste pesquisador ou seu grupo serem contemplados nos editais que oferecem
bolsas, auxílios e financiamento para a pesquisa em geral, mesmo que estes subterfúgios
(“malandragens”) não sigam os princípios da ética nas atividades de pesquisa científica [19-21].

Finalizando este texto, é possível dizer, em suma, que embora a publicação de artigos
seja uma atividade essencial para o desenvolvimento da pesquisa científica, não deveria ter
sido transformado numa espécie de certame, em que a disputa por verbas, auxílios, bolsas e
demais formas de estímulo à pesquisa, concedidas com esse critério puramente quantitativo
por agências de fomento, que naturalmente estimulou o surgimento de distorções em que a
ética na produção científica foi gravemente atingida. Urge tomar providências para que esse
tipo de fraude acadêmica, estimulada por aberrações do tipo “publish or perish”, não continue
acontecendo com certa frequência.

Cássio Barbosa

É Engenheiro Metalúrgico formado pela Escola Politécnica da UFRJ (1989/1990), mestre e doutor em Engenharia Metalúrgica e de Materiais pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (COPPE/UFRJ: 2001). Possui experiência na indústria nas áreas de fundição de ligas de alumínio, fundição, laminação, extrusão e trefilação de cobre e suas ligas. É Engenheiro vinculado ao Instituto Nacional de Tecnologia (INT) desde 2002. A partir de 1988 tornou-se membro associado da ABM (Associação Brasileira de Metalurgia, Materiais e Mineração), instituição onde leciona diversas disciplinas em cursos de pós-graduação (lato sensu) desde agosto de 2013. Atua como colaborador do Infomet, portal informativo sobre Metalurgia e áreas afins desde 1998. Também é autor do livro “Metais Não Ferrosos: Microestrutura, Propriedades e Aplicações”, publicado pela editora E-Papers em 2014 e do livro ” Fundamentos de Análise Fractográfica de Falhas de Materiais Metálicos, publicado pela editora Blucher em 2021.

Referências

[1] O.H. Yammaoto, Publish or perish: o papel dos periódicos científicos, Editorial, Estud. psicol. (Natal), 5 (1), Jun, 2000. . Acesso em 28/02/2023.

[2] – ADURN Sindicato, VERDADE_é preciso superar o “publish or perish” e salvar a ciência_URL. . Acesso em 28/02/2023.

[3] – Odir Dellagostin, UFPel, Publish or perish: Como prosperar no ambiente acadêmico. . Acesso em 28/02/2023.

[4] – Atlas Assessoria Linguística – Empresa de Tradução, O que é Qualis Capes e qual é sua função na pesquisa. Acesso em 28/02/2023.

[5] – Carla Dendask, Qualis Periódicos – CAPES, Núcleo do Conhecimento, <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/blog/mestrado/qualis-periodicos-capes>, Acesso em 28/02/2023.

[6] – Pesquisadores criticam novo ranking de revistas científicas da Capes, o Qualis – ISTOÉ DINHEIRO, <https://www.istoedinheiro.com.br/pesquisadores-criticam-novo-ranking-de-revistas-cientificas-da-capes-o-qualis/>, Acesso em 28/02/2023.

]7] – Por que o Qualis gera tanta polêmica?_ – Even3, <https://blog.even3.com.br/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-o-qualis-capes/>, Acesso em 28/02/2023.

[8] – Periódicos de Minas, O que é fator de impacto e porque ele é importante para o seu periódico. Acesso em 06/03/2023.

[9] – Beatriz Coelho, Fator de impacto_ o que é e como consultar, , Acesso em 06/03/2023.

[10] – PMC, Journal Impact Factor_Its Use, Significance and Limitations . Acesso em 06/03/2023.

[11] – Clarivate Analytic Journal Impact factor, Web of Science, Acesso em 06/03/2023.

[12] – UFRRJ, Guia sobre plágio, Acesso em 07/03/2023.

[13] – UFF – Cartilha sobre plágio acadêmico, , Acesso em 07/03/2023.

[14] – University of Oxford, UK, Plagiarism, Acesso em 07/03/2023.

[15] – Bowdoin College, The Common Types of Plagiarism, , Acesso em 07/03/2023. [16] – Voitto, O que é autoplágio, , Acesso em 08/03/2023.

[17] – FIOCRUZ (Manguinhos), Ética editorial e o problema do autoplágio _ História, Ciências, Saúde, , Acesso em 08/03/2023.

[18] – AJE, Self-Plagiarism_How to Define It and Why You Should Avoid It, , Acesso em 08/03/2023.

[19] – Enago Academy Brazil, O que é salami slicing no mundo da pesquisa, , Acesso em 09/03/2023.

[20] – D.C. Consultoria, Publicações-salame: O que são e porque devem ser evitadas, , Acesso em 09/03/2023.

[21] – PMC-Biochem Med, – Salami publication_ definitions and examples, , Acesso em 09/03/2023.

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